• Edição 115
  • 21 de fevereiro de 2008

Faces e Interfaces

Genes maquiavélicos: comportamento ditado pela genética?

Priscila Biancovilli e Monique Pereira – AgN/PV

Um livro lançado recentemente pela professora de engenharia Bárbara Oakley, da Universidade Oakland, em Michigan (EUA), provocou polêmica no mundo acadêmico. Segundo a autora, algumas combinações de genes podem gerar comportamentos maquiavélicos em determinadas pessoas, pré-definindo tipos de personalidade rejeitados pela sociedade. Em seu livro Evil genes, Bárbara proclama a existência de um grupo de genes que pode afetar o funcionamento do cérebro, sugerindo intenções, impulsividade, humor, ansiedade e até mesmo desvios de caráter. A autora afirma, algumas de suas idéias foram baseadas em observações na própria irmã; ela roubou o namorado da mãe para conseguir viajar para Paris.

Estas hipóteses soterram definitivamente a filosofia da tábula rasa, de John Locke. Dentro desta idéia, todos os seres humanos nascem intrinsecamente iguais, são moldados em sua totalidade pelo ambiente que os cerca. Apesar de esta teoria já ter sido ultrapassada com o desenvolvimento da genética (segundo os geneticistas, é a mistura de ambiente e genes que dita sua personalidade), a autora joga um peso maior no componente biológico como fator determinante do ser. Até que ponto estas idéias podem ser verdadeiras? Qual a real influência dos genes no desenvolvimento humano? Para discutir estas questões, convidamos as professoras Márcia Gonçalves Ribeiro, do Serviço de Genética Clínica do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG) e Marta Rezende Cardoso, do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da UFRJ.

 

Márcia Gonçalves Ribeiro

Professora do Serviço de Genética Clínica do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG)

“Sem ler o livro não poderemos ver se a autora tem algum trabalho científico de identificação de genes maléficos - mas acho que isso não ocorreu. Ela deve ter estudado uma série de trabalhos onde alguns genes foram identificados e supostamente ligados à personalidade. Como este é um tema extremamente difícil, creio que seja cedo para tirarmos conclusões. Sabe-se que há de fato, genes que concorrem para doenças psiquiátricas (a primeira observação foi constatação de distúrbios ocorrentes em determinadas famílias). Podemos citar um exemplo, como a esquizofrenia, é relativamente comum ocorrerem casos da doença em uma mesma família; outro assunto é a obesidade ou propensão a ela, já foi verificada uma predisposição genética. Acho que a palavra mais bem encaixada é predisposição, ou seja, o indivíduo apresenta uma alteração em seu genoma que o predispõe a algo. Entretanto, se este indivíduo não entrar em contato com outro fator que se combine com sua predisposição, o efeito deste conjunto de genes pode jamais se manifestar.

Esta forma de pensamento – a genética exerce uma influência tão ou mais forte que o ambiente – pode gerar um intenso preconceito sustentado em algo ainda não muito palpável. Nossa personalidade é resultado do nosso código genético, somado à interação com o meio ambiente. Algo que reforça esta idéia é a separação de gêmeos monozigóticos (idênticos). Imagine que eles sejam distanciados ao nascimento, cresçam em famílias e culturas distintas, em ambientes completamente diferentes um do outro. Com certeza, eles se tornarão pessoas de personalidades marcadamente distintas. Claro, o ambiente não determina 100% da personalidade. Na verdade, a ciência ainda não descobriu esta porcentagem, pode ser bastante variável de pessoa para pessoa, mas é esta mistura entre genética e ambiente que age de forma decisiva para o tipo de pessoa que alguém se tornará. Esta interação existe até quando falamos de síndromes genéticas: uma criança com Síndrome de Down, se bem estimulada, irá se desenvolver e apresentar ganhos cognitivos maiores do que uma outra não estimulada.

Existe o temor de o mapeamento genético poder criar formas ainda mais intensas de discriminação. Por exemplo, um empregador pode exigir seu mapa genético antes de te contratar, para ter certeza de que não desenvolverá nenhuma doença grave ao longo da vida, mesmo para saber se não terá nenhum ‘gene maquiavélico’. Da mesma forma, um plano de saúde pode baratear ou aumentar seus preços, a partir de suas determinações genéticas. Isto é prejudicial à sociedade. Existe uma moléstia genética chamada Doença de Huntington, neurológica-degenerativa e começa na vida adulta. Infelizmente, não existe prevenção para ela, não podemos atuar de forma alguma para amenizar seus danos. Todos têm o direito de saber se possuem o gene desta doença. Porém, esta informação pode e deve ser mantida em sigilo. Acredito que no futuro isto se manterá.

Outra curiosidade é existirem algumas situações raríssimas em que um gêmeo idêntico desenvolve uma doença genética que o outro não possua. Isto nos prova, por mais que os irmãos sejam monozigóticos, seus códigos genéticos podem não ser 100% idênticos. Estas características diferenciadas podem existir não apenas em relação a doenças, mas também a traços de personalidade.

Para fechar, acredito que esta polêmica seja saudável. É importante a descoberta, a criação de verdades depois reforçadas ou desmistificadas, é assim que a ciência evolui.”

Marta Rezende Cardoso

Professora adjunta do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica e de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da UFRJ

“Baseando-me num referencial psicanalítico, considero completamente absurda e, de certa forma, ‘ingênua’ — ainda que inegavelmente perigosa e preconceituosamente violenta — qualquer tentativa de explicar comportamentos humanos, inclusive aqueles marcados pela violência dirigida ao outro, a partir de supostos arranjos genéticos, ou seja, a partir de uma visão biologizante, ancorada numa visão que priorizaria aspectos inatos da vida humana.

Como bem mostrou Freud, é a dimensão de singularidade que se nos apresenta de fato como inescapável e determinante. A imensa complexidade que caracteriza a subjetividade humana, tendo em vista todos os aspectos envolvidos no processo de funcionamento e desenvolvimento psíquico, impede de modo absoluto que, do ponto de vista teórico, possamos determinar a priori, ou seja, de maneira preconceituosa, qualquer modalidade de comportamento ou patologia a partir da presença de certas condições. Porém, lidar com esse ‘desconhecimento’, com essa impossibilidade de dominar o destino em permanente abertura e por meandros fundamentalmente inconscientes da vida subjetiva, seja pela ciência, seja pela própria consciência, nem sempre constitui uma tarefa fácil. Assim, o desejo de saber, de poder determinar o destino de cada um, pode se revelar tentador.

Só podemos efetivamente analisar uma situação ‘clínica’ a posteriori, ou seja, todos os comportamentos serão sempre a resultante de múltiplas causas, sejam eles quais forem, em uma intricada articulação entre mundo externo e interno, entre universo consciente e inconsciente. Nesta articulação inúmeros elementos estão envolvidos, em uma relação de sobredeterminação.

A força que move a existência psíquica é a pulsão, em sua dupla vertente: destrutiva e criativa. Esta constatação trágica, mas incontornável, que a teoria freudiana nos legou, obriga-nos a reconhecer que somos todos habitados, no âmago de nosso ser, por forças também destrutivas. Estas estão em permanente conflito com as nossas pulsões criativas, Eros. Será a partir dessa luta, da qualidade do resultado dela — resultado, aliás, permanentemente em transformação — que poderemos eventualmente vir a conter ou a transpor nossos impulsos destrutivos. Ou seja, o ‘mal’, o excesso pulsional sem dique, sem limite, é parte inerente do psiquismo humano, assim como a necessidade de contê-lo, de limitá-lo, de ultrapassá-lo. 
A dificuldade e a ameaça que esta constatação pode representar para certos indivíduos faz com que se procure projetá-la no outro, talvez como tentativa — na verdade, extrema e, ao mesmo tempo, elementar — de expurgá-la de si mesmo, na busca de escapar ao seu domínio. Ao determinar uma localização ou fixação do ‘mal’ em certos indivíduos que supostamente estariam ‘marcados’ por ele desde sempre, na própria carga genética, tenta-se, no meu entender, uma dominação, dominação de um ‘estrangeiro’ que, de fato, está potencialmente em todos nós.

Ao longo da história, esta perigosa manifestação de onipotência, de desejo de dominação, não nos tem sido em nada estrangeira.”