• Edição 195
  • 29 de outubro de 2009

Faces e Interfaces

Doping cerebral: vantagem ou prejuízo no futuro?

Cília Monteiro e Tássia Veríssimo

Diversos medicamentos são indicados a quem sofre de depressão, hiperatividade, distúrbios do sono ou déficit de atenção. No entanto, essas substâncias têm sido utilizadas por pessoas saudáveis, que querem simplesmente “turbinar o cérebro” e melhorar o desempenho acadêmico. A prática foi recentemente defendida por pesquisadores de universidades americanas e britânicas, através de um manifesto publicado na revista Nature. Eles defendem a liberação de tais fármacos para o aprimoramento neurológico, através da melhora da cognição, concentração e memória.

O assunto tem gerado discussões, visto que se trata de remédios de forte efeito, que trazem transtornos colaterais e, em longo prazo, podem causar danos à saúde de quem usa. Muitos profissionais da saúde condenam o manifesto dos pesquisadores que se utilizam do chamado doping cerebral. Para tratar da polêmica, o Olhar Vital convidou duas especialistas da UFRJ.

Cristina Maria Duarte Wigg

Professora do Instituto de Psicologia da UFRJ

“As demandas do mundo moderno e o comportamento capitalista da indústria farmacêutica podem ser os maiores responsáveis pelo doping cerebral. Pesquisas sobre drogas que poderiam melhorar o desempenho cognitivo, prejudicado por doenças neuropsiquiátricas, sempre existiram e também, de certa forma, têm servido de argumento para profissionais da saúde mental que prescrevem psicofármacos como rotina.

Também os veículos de informação, por meio de artigos ou conferências, frequentemente financiados por laboratórios farmacêuticos, confirmam a eficácia de alguns medicamentos na cognição. A euforia passa a tomar conta daqueles que medicam e dos pais, que convivem com crianças e jovens tidos pela sociedade como perturbadores de ambientes sociais.

Drogas milagrosas para diagnósticos construídos pelo mundo moderno e um aumento cada vez maior na prescrição de estimulantes deveriam alertar a sociedade para o fato de que algo nestes procedimentos está incorreto e, portanto, deveria ser questionado. Um exemplo disso é o descontrole na prescrição do metilfenidato, conhecido comercialmente como ritalina, no combate a problemas cognitivos e de comportamento que sempre existiram e que hoje conhecemos como TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade).

O doping cerebral, que nada mais é do que o uso de psicofármacos para melhorar a performance cognitiva e intelectual, é mais um comportamento produzido por uma sociedade materialista e imediatista, competitiva e desleal, que está criando a ilusão de que psicofármacos geram sucesso e bem-estar. Assim como faz a indústria do tabaco e do álcool. Os efeitos do uso contínuo destas drogas serão conhecidos pela sociedade apenas em longo prazo, quando não houver mais chance de se reverter o prejuízo provocado. Nossas crianças e jovens estão sendo usados como verdadeiras cobaias e fontes de lucro, e isto não me parece justo.

As substâncias mais utilizadas têm sido donezepil, rivastigmina e o metilfenidato, princípios ativos dos medicamentos Aricept, Prometax e Ritalina, respectivamente. O que os usuários acreditam e o que se publica é que melhoram a qualidade da atenção, a memória, enfim, melhoram o funcionamento cognitivo e a performance intelectual.

É possível melhorar o nível de ansiedade e de concentração com medicamentos, mas deve-se atentar para riscos e benefícios. Para falar de desempenho escolar, precisamos discutir a frequente queixa de dificuldade de aprendizagem. Pode ser provocada por diferentes fatores e, dentre eles, podemos citar os problemas de ordem familiar, o sistema de ensino, o baixo peso ao nascer. O baixo desempenho escolar é um reflexo de um ou mais desses fatores, requerendo muito mais do que atenção concentrada e sendo assim um problema muito mais complexo e polêmico. Não me parece que psicofármacos possam ser a solução para este problema.

Uma informação importante quanto ao efeito de medicamentos vem de dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), que alerta para o fato de que no público infantil, que está ainda em desenvolvimento cognitivo e é o mais afetado nos últimos anos pela prescrição desenfreada de psicofármacos, dois terços de todos os medicamentos aplicados para diferentes tipos de problemas produzem de pouco a nenhum efeito.

Nenhuma droga é milagrosa e não deve ser utilizada sem que outros procedimentos terapêuticos, reconhecidos por seus conselhos, tenham sido bem administrados. No Brasil, precisamos ter um maior controle sobre o uso de medicamentos. Segundo estatísticas de 2003, 4 a 11% das internações hospitalares têm como causa o uso de medicamentos, e também estamos entre os dez países que mais consomem medicamentos no mundo.”

Ana Lucia Rosso

Neurologista responsável pelo Setor de Distúrbios do Movimento do Serviço de Neurologia Professor Sergio Novis, do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) da UFRJ

“Não concordo com a utilização de remédios por um indivíduo que não tenha algum distúrbio ou doença, pois os riscos dos efeitos colaterais são maiores que os benefícios gerados pela medicação. Acredito que muito provavelmente isto seja comum no Brasil, pois aqui é mais fácil comprar remédio controlado sem receita do que em outros países.

A Síndrome de Transtorno da Atenção com Hiperatividade é a doença clássica na qual está indicada a Ritalina como substância utilizada no tratamento. Em adultos com doença de Parkinson, o uso de Modafinil está indicado em casos de sonolência diurna. Outras indicações a crianças e adolescentes devem existir, mas as desconheço, pois não sou pediatra.

A decorrência de uma popularização do uso de medicamentos de tarja preta como esses, com a finalidade de melhora do desempenho cerebral, pode resultar no abuso da dose e efeitos colaterais graves. Isso varia de efeitos físicos, como taquicardia, insônia e problemas gástricos, a efeitos mentais, como agitação psicomotora, alucinações e até mesmo transtornos mentais graves.

Um médico só pode prescrever remédios quando se trata de problemas que estão indicados na bula. Se for prescrito um medicamento para algo que não está discriminado em suas indicações, o profissional que receitou assume o risco, caso algo aconteça ao paciente, pois o respaldo do médico é a bula.

Os consultórios não atendem voluntários, e sim pessoas que estão com problemas. Não se pode receitar algo para deduzir o que vai acontecer. Dizer “toma que vai melhorar seu desempenho” não existe. Isto só pode ser dito se houver uma pesquisa científica que o comprove, respaldada por um comitê de ética. Até para teste em animais se utiliza a aprovação de um comitê de ética; com humanos não pode ser diferente.

Pesquisadores que fazem uso desses medicamentos fora de um estudo pautado nas devidas normas e padrões de ética são irresponsáveis. Se quiserem usar a Ritalina simplesmente para melhorar o desempenho cerebral de uma pessoa saudável, é preciso testar esse uso antes e comprovar cientificamente que ele não trará danos ao indivíduo em longo ou curto prazo.

O incentivo do uso desses medicamentos ainda pode ter outros interesses por trás. Por exemplo, se medicamentos de tarja preta pudessem ser vendidos sem receita médica, a indústria farmacêutica acharia ótimo.”