• Edição 236
  • 07 de outubro de 2010

Faces e Interfaces

TDAH deve ser vinculado apenas à genética?

Daniele Belmiro

O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) é uma condição que afeta de 3 a 5% das crianças em todo o mundo. As crianças diagnosticadas apresentam características como desatenção, inquietude e impulsividade e apesar de ser inteligente e criativo, o portador de TDAH não consegue aproveitar todo seu potencial. Frequentemente, há problemas de aprendizado, dificuldades emocionais e de relacionamento. Segundo a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), o TDAH é um transtorno neurobiológico de causas genéticas que aparece na infância e costuma acompanhar o indivíduo por toda a vida.

No dia 30 de setembro, a revista The Lancet publicou uma pesquisa realizada por uma equipe de cientistas da Cardiff University, do País de Gales, que afirmou ter encontrado evidências da existência de uma raiz genética para o TDAH. O estudo constou na comparação de amostras do DNA de 366 crianças com TDAH com o DNA de 1047 pessoas que não sofriam da condição. Os pesquisadores constataram que 15% das crianças com o distúrbio tinham alterações grandes e raras no seu DNA, em comparação com apenas 7% no outro grupo.

Segundo o site G1, alguns especialistas, no entanto, questionaram veementemente as declarações da equipe, argumentando que apenas um pequeno grupo das crianças com TDAH estudadas apresentou as alterações no DNA. Eles acreditam que, na maioria dos casos, a condição seria resultante de uma combinação entre causas genéticas e fatores externos.

Diante dessa questão convidamos Paulo Mattos, psiquiatra especialista em TDAH e professor associado da UFRJ, e a psicóloga Adriana Carrijo, especialista em Psicologia Clínica e Educacional/Escolar, para esclarecer e opinar sobre o assunto.

Paulo Mattos

Médico psiquiatra especialista em TDAH
Professor Associado e Coordenador do Grupo de Estudos do Déficit de Atenção (GEDA) do Instituto de Psiquiatria da UFRJ

O estudo apresentava alteração genética em uma porcentagem pequena das crianças, como acontece em várias doenças. É o que chamamos de herdabilidade. A herdabilidade vai de zero a um, onde um seria 100% herdável e zero seria nada herdável. Todas as doenças apresentam um percentual de herdabilidade, no entanto há uma interação: eu posso herdar genes, mas, de acordo com o ambiente com que o gene interage, a doença pode ou não aparecer.

É muito raro que uma doença não tenha nenhuma influência do ambiente externo. Quando eu digo que uma doença é genética – o TDAH é uma das doenças mais genéticas em toda a psiquiatria – não significa que não tenha fatores ambientais. Alguns dos fatores ambientais são pobreza, desnutrição e problemas na hora do parto. Quando as crianças que portam o gene são submetidas a esses fatores, elas têm o TDAH; quando não tem o gene e são submetidas aos mesmos fatores ambientais, o TDAH não aparece.

Um exemplo é o diabetes, que é uma doença reconhecidamente genética, mas existem vários casos de diabéticos que não têm nenhum caso da doença na família. Como a genética é probabilística, significa que matematicamente há mais diabéticos na família do indivíduo diagnosticado com essa condição que na população em geral.

Nem sempre aparecem mutações genéticas no estudo, pois deve ser feito um cálculo matemático de uma doença. Só apareceriam mutações genéticas em todas as crianças, se o índice de herdabilidade fosse um, ou seja, 100%. São pouquíssimas doenças genéticas que têm esse índice. Da mesma forma que todas essas crianças foram diagnosticadas com TDAH e, nem sempre, apareceram mutações genéticas, o indivíduo pode ter diabetes diagnosticado e não ter nenhum caso da doença em sua família.

Esse estudo usou o genome-wide analyses, que é um tipo de rastreio poderoso, porém caro, que envolve um número grande de pessoas. No entanto, existem outros estudos diferentes, como um que comparou crianças adotadas e não adotadas e concluiu que a taxa de TDAH nas crianças adotadas não é semelhante à da família adotiva que a está criando, mas, sim, à da família biológica. Logo, a origem da doença não pode ser secundária ao ambiente. Enfim, quando dizemos que uma doença é genética, significa que as chances de incidência são matematicamente maiores nos indivíduos que apresentam casos da doença na família, mas não significa que o indivíduo desenvolverá essa doença obrigatoriamente. Isso existe em Alzheimer, câncer de mama, esquizofrenia, autismo e TDAH. A genética é uma contribuição, não uma determinação. 

Adriana Carrijo

Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica e Educacional/Escolar
Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Cognição e Coletivos (NUCC) da UFRJ

Em minha opinião a pesquisa apresenta inconsistência metodológica e paradigmática. A problemática metodológica se daria pela descrição da amostra de 366 crianças como significativa para uma legitimação diagnóstica ancorada em pressupostos genéticos para o acoplamento de novas “evidências científicas”. No caso do TDAH, um dos maiores engodos está situado na crença em uma modalidade de atenção de tipo focal que não condiz com os imperativos da sociedade contemporânea, multiestimulada, multiatentada e excessiva. Ou seja, a pesquisa desconsidera a cena histórica e social para pensar a construção de sujeitos e formas adaptativas de viver, o que envolveria processos de ordem afetiva, cognitiva e social (processos indissociáveis), e afirma certas propriedades cognitivas a partir de uma modelização genética discutível, associando-a à ideia de foco e qualidade atentiva (disso resulta a afirmação do déficit) e, inevitavelmente, passível de “otimização” pela intervenção do especialista.

Vale acrescentar que a expansão desse diagnóstico tende a alastrar-se, uma vez que existe uma tendência a considerá-lo apenas a partir dos sintomas, o que dispensaria a avaliação dos “danos efetivos” à vida do paciente associada à redução em quase 50% dos sintomas requeridos para a confirmação do mesmo em adultos. Assim, de um só golpe, fazemos proliferar uma “nuvem psicopatológica” que captura corpos, vidas e estimula a emergência de campos clínicos. A onipresença de um raciocínio biológico, nesse caso, genético no campo da saúde mental casa com os interesses das indústrias farmacêuticas estimulando processos precoces e contínuos de medicalização. 

No campo clínico, a forma de pensar e agir da psicologia diante da sociedade e do padecimento do sujeito pode resultar num posicionamento cauteloso diante de “achados e ditos” científicos “bombásticos” e supostamente taxativos. Contudo, também contemplamos ‘psicologias’ que complementam a ação e a intervenção da Psiquiatria Biológica preconizando comportamentos como “bioidentidades”, qual seja, como expressões de impulsos marcados organicamente o que reforça a tipificação da existência pela noção/descrição dos “transtornos”.

No caso de crianças assim diagnosticadas, recomendo cautela e exercício crítico antes mesmo da constituição de terapias e terapêuticas medicamentosas. A escola, atualmente, contribui para o alastramento desse diagnóstico em termos preocupantes. Em função dos processos educacionais terem como princípio norteador da aprendizagem uma atenção do tipo focal e concentrada, a maioria dos alunos cabe no quadro descritivo/sintomatológico do desvio proposto: TDAH. Essa instituição, muitas vezes, sugere o encaminhamento, a intervenção médica e medicamentosa cristalizada no uso do fármaco. Na contemporaneidade, o uso do remédio reflete-se no mercado do controle da vida. A questão que se impõe a todos nós requer debate e cruzamento de experiências para a emergência de práticas inventivas e alternativas ao modelo psiquiátrico de gestão da existência.