O falecido enxadrista Bobby Fischer tinha duas características muito marcantes: a inteligência aguçadíssima e o terrível temperamento. O mesmo pode ser dito de ilustres nomes na lista dos maiores gênios que a humanidade já conheceu: de Van Gogh ao poeta brasileiro João Cabral de Mello Neto. As séries de TV, os filmes e a literatura não ficam muito atrás, e arquétipos como o do gênio antissocial doutor House (protagonista do programa homônimo) parecem reafirmar a crença de que pessoas mais mal-humoradas tenderiam a ser mais inteligentes que a maioria.
Estudos recentes, no entanto, estão tornando científico o que até então era apenas um lugar-comum popular. Na última edição da revista científica Australasian Science foi publicada uma pesquisa que comprovaria que pessoas com humor negativo teriam maior capacidade para realizar julgamentos e memorizar informações do que aquelas que estão num melhor dia. Será?
Para debater a questão, o Olhar Vital convidou o psiquiatra Antônio Egídio Nardi, professor-adjunto do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e o psicólogo Marco Antônio Brasil, chefe do Setor de Psiquiatria e Psicologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, também da UFRJ. Suas opiniões profissionais mostram que não há consenso quando se fala nem de inteligência, nem de temperamento.
Antônio Egídio Nardi
Professor-adjunto do Instituto de Psiquiatria, pesquisador do CNPq e coordenador do Laboratório de Pânico & Respiração da UFRJ
“O estudo australiano é muito interessante, mas possui algumas questões que impossibilitam que os resultados sejam generalizados.
Um ponto que julgo importante é o conceito de inteligência. Inteligência é uma função mental muito complexa e com diferentes definições. Não é apenas uma medição de QI ou a capacidade de resolver determinados problemas. Existem diferentes tipos de inteligência.
Outra questão é a definição de mau humor. Ele também pode ter diferentes conotações: pode ser do tipo explosivo, do tipo crônico (quando a pessoa sofre do que parece ser uma constante ‘rabugice’, sempre tomando o pior lado da situação), do tipo distímico (com o humor irritável, caracterizado por melancolia) e do tipo depressivo.
Os resultados devem ser analisados com cuidado e isso não se observa na clínica.
Dessa maneira, a correlação (entre inteligência e mau humor) não ocorre: depende das definições para inteligência e para mau humor.
O que foi observado no estudo australiano não pode ser generalizado para outras populações.”
Marco Antônio Brasil
Chefe do Setor de Psiquiatria e Psicologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
“A inteligência é algo complexo e que não pode ser definido de maneira reducionista. Existem vários tipos de inteligência e ela não pode ser analisada como um constructo único. Afirmar que pessoas mal-humoradas são mais inteligentes do que as outras é limitar o campo das possibilidades da inteligência para um único aspecto que foi definido, de forma arbitrária, como sendo a definição correta do que se entende por inteligência.
É preciso também levar em consideração o que está sendo considerado como bom humor e mau humor. A maioria das pessoas tem momentos em que estão bem humoradas e outros em que estão mal humoradas e isso depende de situações que estão vivendo.
O mau humor crônico, pessoas que estão sempre infelizes e só conseguem enxergar o lado ruim das coisas, é uma doença causada, em geral, por transtorno de personalidade ou depressão e não se pode afirmar que isso as tornaria mais inteligentes que as outras.
Alguns estudos sugerem que pessoas com transtornos psiquiátricos, como epilepsia, teriam mais talento para determinadas atividades, como escrever, por exemplo. Mas isso é muito vago porque, assim como existem pessoas com esses problemas e que são talentosas, existe também um enorme número que não possui nenhum talento especial.
A questão é que ainda é muito cedo para se fazer afirmações como a de que o humor afeta na capacidade intelectual das pessoas, e os estudos nessa área ainda são incipientes e não representam um consenso na comunidade científica.”