— Estamos descrevendo um achado em Imunologia que resulta da interseção de três ricas vertentes da pesquisa biomédica brasileira: Doença de Chagas, no início do século passado; a descoberta da bradicinina, em 1949; e dos fundamentos que nortearam a síntese de medicamentos anti-hipertensivos nos anos 60 — relata Julio Scharfstein, chefe do Laboratório de Imunologia Molecular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) da UFRJ.
O projeto do professor Julio Scharfstein, recentemente contemplado para financiamento pela Fundação Bill & Melissa Gates, visa utilizar anti-hipertensivos para potencializar o efeito de determinadas vacinas. “Trata-se de uma estratégia concebida para aumentar a eficácia de vacinas contra patógenos intracelulares, tais como vírus, parasitas e algumas bactérias. Isso ocorre à custa da mobilização mais efetiva da atividade imunoestimulatória da bradicinina, um hormônio que é, em geral, rapidamente gerado e destruído em nosso organismo”, explica o pesquisador.
Histórico do trabalho
De acordo com o professor Julio, a ideia que norteou o projeto surgiu em seu laboratório, há cerca de sete anos. “Estudávamos o papel de enzimas proteolíticas no mecanismo de virulência do protozoário Trypanosoma cruzi, agente etiológico da Doença de Chagas. Percebemos que a passagem desse parasito pelos tecidos invariavelmente induzia a formação de discretos edemas”, relata o professor.
A partir daí, exames minuciosos levaram o grupo a compreender a complexa dinâmica do processo inflamatório desencadeado pelo Trypanosoma cruzi. “No bojo dessas observações, veio à tona um achado interessante, que redirecionou nossas linhas de pesquisa: a formação do edema intersticial em torno do patógeno tinha repercussões dramáticas sobre a atividade do sistema imunológico”, aponta o pesquisador.
Após anos de pesquisa, foi descoberto que a relação entre inflamação e imunidade é, pelo menos em parte, controlada pela ação de um pequeno hormônio peptídico, que é rapidamente liberado e consumido nos tecidos inflamados. “Felizmente para nós, brasileiros, o hormônio tem a marca da ciência biomédica brasileira: trata-se da bradicinina, um potente peptídeo vasodilatador descoberto por Mauricio Rocha e Silva e Wilson Beraldo, em trabalhos pioneiros publicados em 1949”, informa Scharfstein.
O hormônio bradicinina
O banco de dados (PubMed) mostra que a função imunológica da bradicinina foi desvendada em 2003, pelo grupo de Julio Scharfstein. Os trabalhos publicados desde então demonstraram que, além de seus efeitos vasculares, o hormônio potencia a resposta imune contra o Trypanosoma cruzi. “Percebemos que a bradicinina funciona como um sinal de alerta para o sistema imune. O efeito biológico desse hormônio é mediado por receptores presentes na superfície de células dendríticas, um tipo de célula ‘sentinela’ do sistema imune, que normalmente se encontra em estado quiescente em nossos tecidos”, explica o professor.
Segundo o professor Julio, uma vez iniciado o processo inflamatório, a bradicinina, juntamente com outros sinais de perigo, induz alterações na função das células dendríticas. “Depois de engolfar resíduos (antígenos) provenientes dos patógenos, as células dendríticas são atraídas para vasos linfáticos. Daí prosseguem sua jornada até finalmente alcançar os linfonodos, que drenam o sítio de inflamação”, observa o pesquisador.
Uma vez estacionadas no interior de linfonodos, as células dendríticas interagem com linfócitos T. “Durante esse contato íntimo, que pode durar algumas horas, as células dendríticas emitem sinais que transformam os linfócitos CD8 T em células citotóxicas. Depois de serem liberadas na corrente sanguínea, as células CD8 T citotóxicas são atraídas para os tecidos inflamados, destruindo as células infectadas. O processo ocorre em infecções por diversos patógenos intracelulares”, expõe Scharfstein.
— Conforme já mencionei, o tempo de vida da bradicinina é efêmero. Isso ocorre porque os níveis de bradicinina liberados em sítios inflamatórios precisam ser regulados. Tal controle é exercido por enzimas (peptidases) que degradam rapidamente esse hormônio. Por conta disso, o organismo evita que o endotélio vascular seja excessivamente estimulado pela bradicinina, uma vez que isso provoca edema — destaca Julio. Segundo ele, a enzima conversora de angiotensina (ECA) é a mais bem estudada entre as enzimas que destroem a bradicinina.
O papel dos comprimidos
Na década de 60, Sérgio Ferreira, professor da Universidade de São Paulo (USP), fez uma importante descoberta, que resultou no desenvolvimento da primeira geração de inibidores de ECA. “Graças aos seus estudos, dispomos hoje de um amplo leque de fármacos anti-hipertensivos. Alguns deles caíram no domínio público, sendo comercializados como genéricos”, relata o pesquisador.
O projeto submetido à Fundação Bill & Melissa Gates visa melhorar a eficácia de vacinas mediante o emprego de inibidores da ECA. “A ideia é a seguinte: usando um único comprimido destes fármacos, pretende-se evitar que a bradicinina seja rapidamente destruída nos sítios de vacinação e linfonodos drenantes . Queremos protegê-la, mas apenas durante algumas horas, para otimizar os seus efeitos estimulatórios sobre as células dendríticas”, revela Scharfstein.
— Através desta simples manobra farmacológica, logramos vacinar camundongos contra dois patógenos letais diferentes: o T. cruzi e um vírus da mesma família que o da Dengue, que causa encefalite letal em camundongos e em seres humanos (em colaboração com o Dr. Benedito Fonseca, do Departamento de Virologia da USP/Ribeirão Preto) — relata o professor. Segundo ele, é ainda difícil prever se a estratégia de mobilizar mais plenamente os mecanismos de defesa natural com fármacos anti-hipertensivos será exitosa em humanos.
Julio considera a obtenção de memória imunológica duradoura como o grande desafio na área de vacinação. “Sem isso, será complicado prevenir infecções com patógenos extremamente agressivos como T. cruzi, Plasmódio falciparum, o agente etiológico da malária e os vírus que estão circulando por aí”, aponta.
— No plano dos sonhos, é óbvio que gostaríamos de melhorar a eficácia de vacinas mediante a ingestão de um ou poucos comprimidos de um fármaco seguro e de baixo custo — conclui Julio Scharfstein. Entretanto, serão necessários anos de trabalho para saber se a ideia terá impacto na vacinação humana.