• Edição 187
  • 03 de setembro de 2009

Faces e Interfaces

É válido proibir manifestações religiosas por atletas?

Cília Monteiro


A seleção brasileira de futebol superou os Estados Unidos em junho deste ano, conquistando a vitória da Copa das Confederações. Ao vencerem, os jogadores se abraçaram no meio de campo e rezaram em agradecimento ao sucesso na partida. A cena percorreu o mundo e emocionou muitos espectadores. No entanto, também provocou reclamações de entidades filiadas à Federação Internacional de Futebol (FIFA), que alegaram se tratar de uma propaganda religiosa.

Menos de duas semanas após o ocorrido, a FIFA enviou um ofício à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), declarando que não irá mais permitir mensagens religiosas em comemorações de jogadores durante suas competições. A medida gerou diversas reações e divergências de opinião. Enquanto alguns acreditam que futebol e religião não se misturam, outros veem a fé como defensora de valores éticos fundamentais ao esporte.

Ainda alega-se que, na prática, a decisão se restringirá à fé cristã, já que a FIFA não teria autoridade para proibir manifestações de religiões tidas como “culturais”. Para discutir a questão e opinar sobre o assunto, o Olhar Vital convidou dois especialistas, Alexandre Palma e Eliane Brígida Moraes Falcão.

Alexandre Palma

Doutor em Saúde Pública, docente da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ) e estudioso da área de treinamento de esportes de longa duração

“Sou contra a manifestação religiosa em campo. O espaço esportivo não tem essa finalidade, para isso existem templos e igrejas. A questão da liberdade de expressão não pode ser confundida com uma oportunidade para a realização de propagandas. A ideia de propaganda está ligada ao fato de que, quando um indivíduo se manifesta religiosamente, está querendo encontrar seguidores, então é uma forma de publicidade. Nesse sentido, isso pode de certo modo ferir o interesse coletivo. Inclusive a FIFA proíbe qualquer tentativa de propaganda por jogadores.

Imagine que, num país onde a religião é muito levada à risca, haja a manifestação de outra crença em campo. Esse comportamento pode chocar o grupo do local e, num contexto de radicalismo religioso, pode trazer consequências. Considero correta a medida tomada pela FIFA.

A iniciativa deve atender a todas as religiões. Por exemplo, se houvesse uma copa do mundo em Israel e os muçulmanos se manifestassem de forma a não agradar a população, existiria a possibilidade de um conflito em torno da situação. Outro exemplo seria uma manifestação judaica na Palestina. Então, a medida tem que ser seguida por todos.

A princípio, podemos especular sobre consequências dessa proibição: se pensarmos na possibilidade de manifestações religiosas radicais, creio que conflitos são evitados com a medida. Já vimos aqui no Brasil certa tensão entre evangélicos e católicos, por exemplo. Isso poderia gerar no futuro algum tipo de agitação. Acho a iniciativa da FIFA interessante no sentido preventivo.

Mas acredito que não será possível proibir as manifestações mais simples, como um sinal da cruz após um gol. No entanto, casos como o da seleção brasileira serão proibidos e punidos. Não sei se situações como essa já eram observadas, mas qualquer tipo de manifestação em camisa já estava previsto na regra e é proibido, apesar de alguns árbitros não criarem caso.

Acho pouco provável que a FIFA volte atrás, mas, como existem muitos interesses em jogo, pode acontecer. Algumas federações estão fazendo uma grita muito grande para que se puna com mais severidade o Brasil, pois houve apenas uma advertência. A federação da Dinamarca cobrou punição mais rigorosa. Acredito que o episódio não vá passar em branco. O Brasil pode até não sofrer maiores consequências, mas casos como este não mais ocorrerão.”

Eliane Brígida Morais Falcão

Professora associada e coordenadora do Laboratório de Estudos da Ciência do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES) da UFRJ e pesquisadora do Observatório da Laicidade do Estado (OLÉ) da UFRJ

“A medida apropriada é permitir amplamente o exercício da fé individual, como, aliás, é obrigatório, de acordo com a lei de muitos países, inclusive a do Brasil. Contudo, é preciso considerar a perspectiva laica, não se permitindo o uso do espaço institucional do realizador do evento (que não é religioso) para fins de manifestação ou divulgação religiosa.

A fé individual deve ser sempre respeitada, esse é o valor maior. Uma das formas de respeito é a preservação de espaços laicos. Um católico, um evangélico, um umbandista ou muçulmano, por exemplo, podem ir a um campo para assistir a um jogo de futebol e também frequentar espaços religiosos, tanto quanto queiram. E, independentemente disso, podem aplaudir ou vaiar a jogada de qualquer atleta, que num campo se apresente como jogador de uma seleção ou um time de futebol.

A FIFA não tem soberania, ou seja, ela está sujeita à legislação dos países em que atua, onde pode fazer valer sua autoridade no âmbito das atividades do futebol. Não tenho notícia da existência de algum país cuja legislação obrigue organizadores de eventos esportivos a colocarem sua estrutura à disposição da divulgação de crenças religiosas.

Usar uma segunda camisa (com dizeres ou símbolos religiosos) no campo de jogo não parece ser elemento constitutivo de nenhuma religião. Como também não o é o rito de orar de mãos dadas no campo de futebol, quando os atletas ainda se encontram expostos à mídia do evento e à torcida presente.

O Brasil como país não cometeu excessos por sua manifestação religiosa, pois é um estado laico. Portanto, não se manifesta religiosamente nem com excesso nem com moderação. O que se viu foi a manifestação de um grupo de jogadores brasileiros. A análise do excesso, ou não, deve-se dar não pela simpatia ou antipatia pela fé de atletas, e sim mediante considerações sobre o respeito a regras de utilização de dado espaço. Se não havia regras que mostrassem o limite defendido pela FIFA, pode-se dizer que não houve excesso. Excesso haverá se, após estabelecimento de regras, essas não forem respeitadas.

Até o presente momento, que eu saiba, a medida não ensejou distinção de tratamento entre religiões ou diferentes países que participam da FIFA. Quanto à possibilidade de um recuo da decisão, a FIFA é uma instituição do mundo social; está sujeita ao jogo das pressões sociais. É possível aperfeiçoar caminhos para consolidar o futebol como esporte que congrega diferentes culturas e religiões, tanto em campo quanto na torcida.”