Segundo dados do Ministério da Sáude, o cigarro mata quase 5 milhões de pessoas em todo o mundo e 200 mil no Brasil a cada ano. No último dia 26 de março, a indústria de cigarros Souza Cruz conseguiu uma liminar que suspendeu a nova campanha da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que determinava a publicação de imagens mais chocantes nos maços de cigarros e na publicidade alertando sobre os riscos do produto. Dentre as novas imagens, que começariam a ser veiculadas a partir de maio, havia um coração infartado repleto de cigarros e um feto abortado em um cinzeiro.
Alegando que as imagens seriam fantasiosas, a Souza Cruz usou pareceres técnicos de cardiologistas e advogados para impedir a circulação das figuras que haviam sido selecionadas com base em um amplo estudo sobre o grau de aversão que podiam causar. A pesquisa, realizada entre 2006 e 2008 pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) em parceria com universidades do Rio de Janeiro, mediu a reação de 212 jovens entre 18 e 24 anos, fumantes e não fumantes, diante das imagens.
Para discutir a validade dessa campanha da Anvisa, bem como a reação da Souza Cruz, o Olhar Vital entrevistou os especialistas Alberto de Araújo, diretor do Núcleo de Estudos e Tratamento do Tabagismo (NETT) do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), e Eliane Volchan, professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCC) e pesquisadora da área de neurobiologia humana.
Alberto de Araújo
Diretor do NETT
“Essa iniciativa da Souza Cruz de proibir a veiculação dessa terceira campanha de imagens aversivas em maços de cigarro é lamentável. Primeiro porque essas advertências são previstas na Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, compromisso internacional pela adoção de medidas de restrição ao consumo de cigarros assinada pelo Brasil. Dentre as medidas do controle do tabagismo, essas advertências têm um papel fundamental de mostrar de forma chocante as doenças relacionadas ao tabaco, que são cerca de 55. Além de mostrar os males do tabaco e expor isso no próprio maço, a campanha cria condições para que pessoas que ainda não se iniciaram ao fumo de forma dependente se questionem quanto ao uso de um produto que causa doenças em todas as idades. As advertências também alertam para o tabagismo passivo: o risco de adoecer ao inspirar a fumaça da ponta do cigarro e exalada pelo fumante em lugares fechados. Elas têm um papel tanto educativo de informar sobre os riscos do tabagismo, quanto de fazer com que o fumante, ao ver essas imagens, se questione se deve continuar a fumar. Cerca de 80% dos fumantes pensam em parar de fumar algum dia e estudos feitos pela Datafolha com a série de imagens anterior mostraram que cerca de 70% dos fumantes acreditam que as imagens têm um impacto para eles pensarem em parar de fumar. Então as imagens exercem efeito na prevenção do consumo por pessoas mais jovens e também colaboram para que os fumantes comecem a se questionar.
O tabagismo é uma doença reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), causa uma das dependências mais fortes e é lastimável a ação da indústria no sentido de negar a possibilidade das pessoas de conhecerem os danos a que estão sujeitas. Esperamos que a ANVISA consiga reverter isso na Justiça. Nós acreditamos que essa campanha das imagens impacta tanto jovens quanto mais velhos, mas de maneira distinta. Os mais jovens ― ou por já terem vivido alguma situação em casa com parentes fumantes que adoeceram, por já terem visto o desconforto que é um enfisema pulmonar, um problema circulatório, cardíaco, derrame cerebral ou câncer ― sabem que aquilo pode acontecer com eles. E as imagens nas embalagens de cigarro e na publicidade reforçam isso para os jovens. Elas mostram que fumar pode não ser tão bom quanto parece, pois já entre os jovens diminui a disposição para fazer atividades físicas, para andar no mesmo passo que outras pessoas da mesma idade, traz problemas na esfera sexual causando impotência e infertilidade.
As imagens têm um papel importante. O Brasil foi o segundo país a adotá-las e hoje vários países adotam. A Inglaterra recentemente lançou uma série de imagens tão chocantes quanto esta do Brasil e nem por isso a indústria conseguiu impedir sua veiculação. A argumentação das indústrias de cigarro de que as imagens dessa nova campanha não correspondem à realidade é totalmente furada. As imagens dessa campanha, ao contrário da anterior, que foi feita com pessoas doentes de verdade, são virtuais, mas não deixam de retratar situações que acontecem na vida real. As figuras foram construídas por um grupo muito importante. Foram três universidades que se envolveram neste trabalho: o pessoal da neurobiologia da UFRJ, da neurofisiologia do comportamento da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Departamento de Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). As fotos foram feitas com base em diversos estudos de neurobiologia medindo o quanto as imagens seriam aversivas. O fato de colocar o cigarro, principal veículo do tabaco e elemento que causa doenças, nos órgãos vitais como o coração cria um elo de identificação. Mostrar a doença e não mostrar o cigarro não basta, pois a doença pode ser provocada por outras coisas. O apelo visual de ter o cigarro, agente que causa a doença, ao lado do dano é muito mais forte que só mostrar a doença ou só o cigarro.
À medida que são radicalizadas as medidas para o controle do tabaco através de novas advertências, do controle do contrabando e do aumento do preço do cigarro, as indústrias tentam embarreirar. Esse é o mecanismo que a sociedade tem para se defender dessa epidemia silenciosa do tabagismo, epidemia que vai matando aos poucos e incapacitando as pessoas em plena idade produtiva e trazendo riscos a quem usa diretamente, a quem está exposto à fumaça do cigarro em casa e nos lugares de diversão comum. O cigarro é um grande vilão e a indústria vai fazer de tudo para embargar essas medidas porque o cigarro dá muito lucro. Hoje nós temos um bilhão e trezentos milhões de fumantes no mundo, o equivalente à população da China. A indústria vai buscar todos os mecanismos para defender seu produto. Elas não negam mais que o cigarro causa doenças, mas não querem que a população veja as formas mais dramáticas pelas quais a doença pode se expressar.”
Eliane Volchan
Professora do IBCC e pesquisadora de temas relacionados à neurobiologia da emoção humana
“Por muito tempo a propaganda desenfreada da indústria tabagista expôs várias gerações de crianças e jovens, induzindo-os a associar o ato de fumar a um símbolo de status social, liberdade, ou mesmo de conquistas sexuais. Os resultados daquela época refletem-se nos assustadores números de morte e invalidez decorrentes do uso de cigarros. O consumo de cigarros ou de outros produtos derivados do tabaco é a principal, e praticamente única, causa de morte evitável do mundo. Segundo publicação da Organização Mundial de Saúde (WHO Report on the Global Tobacco Epidemic, 2008 - The MPOWER package, clique aqui), as múltiplas formas de ataque ao corpo humano fazem do tabaco fator de risco de 6 entre as 8 principais doenças que mais matam mundialmente, sendo elas: doença cardíaca isquêmica, doença cérebro-vascular, infecções respiratórias, doença pulmonar obstrutiva crônica, tuberculose e câncer de traqueia, brônquios e pulmões. Entre as doenças causadas pelo tabagismo estão: câncer em 11 órgãos do corpo e 10 tipos de doenças crônicas graves. Além disso, a exposição à fumaça do cigarro (fumo passivo) também acarreta doenças graves em crianças e adultos.
Advertências sanitárias nas embalagens representam uma das medidas centrais da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (da qual o Brasil é signatário), primeiro tratado internacional de saúde pública celebrado em 2002 em Genebra sob os auspícios da Organização Mundial de Saúde (OMS). Através do seu Artigo 11, os países se comprometem a adotar advertências sanitárias impactantes que ocupem pelo menos 50% da área principal das embalagens dos produtos de tabaco com imagens que ilustrem seu sentido. Segundo a OMS, as propostas de diretrizes de melhores práticas para implementação dessa medida são o emprego de advertências que suscitem associações emocionais negativas com o tabagismo, particularmente quando combinadas com informações de apoio e incentivo para deixar de fumar.
Essas advertências sanitárias podem manter o fumante alerta quanto aos prejuízos que podem afetá-lo no futuro. Contribuem também para desestimular os jovens que estejam experimentando a droga. Seu caráter assustador e forte é um meio pelo qual a mensagem pode ser incorporada de forma clara, explícita e implicitamente. Estampadas nos maços, as advertências podem interferir no apelo que a propaganda da indústria tabagista transmite através dos bonitos designs do próprio maço. No âmbito das ações de controle do tabagismo os objetivos das advertências nas embalagens são comunicar e informar à população sobre a dimensão dos diferentes riscos advindos do consumo de tabaco e assim gerar um sentimento de rejeição que afaste o consumidor do produto, principalmente os jovens. Junto com outras medidas, advertências sanitárias nas embalagens trouxeram importantes resultados, como a redução da prevalência de fumantes na população brasileira acima de 18 anos.
Desde que passaram a ser obrigatórias, dois conjuntos de advertências com imagens foram veiculados. Os temas abordados nas nove primeiras, exibidas entre 2001-2003, e nas 10 que estão em circulação desde 2004, abordam diversas consequências decorrentes do uso de cigarros. Pesquisas nacionais mostraram um grande apoio da população, e especialmente de fumantes, às advertências sanitárias. Também foi mostrado que grande parte dos fumantes tem expectativa de que as imagens das advertências devam ser contundentes. Um trabalho realizado na UFRJ por especialistas em neurobiologia da emoção (Nascimento et al., Tobacco Control 2008:17; 405-409) investigou o impacto emocional das fotos veiculadas nessas 19 advertências e concluiu que, para gerar maior repulsa aos produtos derivados do tabaco, novas advertências deveriam evitar a exposição de cenas relativas ao fumo e serem mais assustadoras, ou seja, mais intensas.
A partir de 2006, o Ministério da Saúde passou a investir esforços para inovar no desenvolvimento de um novo conjunto de advertências sanitárias. Sob a liderança do Instituto Nacional de Câncer, foi criado um Grupo de Estudos formado por pesquisadores com diferentes especialidades: Neurociência, Design, Epidemiologia e Saúde pública, oriundos do próprio INCA, Anvisa, UFRJ, UFF e PUC. Com base na pesquisa acadêmica, esse grupo trabalhou durante dois anos no desenvolvimento e em testes do impacto emocional de protótipos de novas advertências. Os resultados serviram de base para a seleção de 10 novas advertências com potencial para induzir repulsa aos produtos derivados do tabaco, ajudando as pessoas a parar de fumar e prevenindo a iniciação de novos consumidores. O layout das advertências foi também modificado para melhorar o impacto visual e semântico dos temas abordados. A oferta de ajuda à cessação do tabagismo através da frase “Pare de Fumar”, apresentando o número de telefone do programa Disque Saúde, passou a ter maior destaque, aumentando a sua visibilidade.
A construção das novas advertências através desse trabalho inovador e multidisciplinar teve destacada repercussão internacional e tem servido de modelo para as ações de controle de tabagismo em vários países.
Pelo exposto só posso concluir que a indústria do tabaco investe na proteção de seus interesses econômicos acima do direito das pessoas ao acesso a uma vida saudável.”