Um casal de jovens suecos decidiu levar ao extremo a tentativa de acabar com as diferenças entre os sexos. Eles resolveram não definir o gênero do filho, que atende pelo nome fictício de “Pop”, atualmente com pouco mais de 2 anos. Os pais alternam as roupas da criança, que usa tanto vestidos como calças masculinas. Eles também variam o penteado do filho. Exceto pelas pessoas mais próximas que ajudaram a trocar a fralda do bebê, ninguém sabe se é menino ou menina. A polêmica foi assunto nos jornais do mundo inteiro. A família alega que, assim que a criança tiver maturidade, ela própria escolherá um gênero. Assim o casal espera ampliar o ideal feminista, que parte do princípio de que o gênero é uma construção social e não deve ser visto como determinante para diferenciar pessoas no trabalho, no esporte, no casamento e em outros campos da vida social. Para entender o comportamento dos pais e o que essa decisão pode acarretar na vida da criança, o Olhar Vital ouviu Bila Sorj, do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCS/UFRJ), e Luciana Rizo, mestre em Psicologia Cognitiva pela UFRJ.
Bila Sorj
Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCS/UFRJ)
“A educação livre de estereótipos e constrangimentos de gênero sempre foi um ideal perseguido pelas feministas que aspiram a uma sociedade mais igualitária e livre. Os estudiosos das relações de gênero e as acadêmicas feministas argumentam que o gênero e também o sexo são construções sociais. Muitos defendem a ideia que a existência de dois sexos biológicos opostos, que definem categorias de humanos distintas, é uma criação cultural e historicamente situada, mas que foi naturalizada na nossa sociedade. Nesse sentido, se essas definições e categorias são produtos humanos, podem ser alteradas e redefinidas pela cultura.
Os pais suecos da criança ‘Pop’ provocaram um debate que, de fato, toca nas nossas crenças mais arraigadas e a reação foi a de patologizar essa proposta. Entretanto, considero que a tentativa de criar a criança ‘livre de gênero’ dificilmente conseguirá alcançar os seus objetivos. Tão logo ela passe a se relacionar mais intensamente com outras pessoas ou participar de instituições sociais, como a escola, acabará tendo que se identificar como homem ou mulher. O binarismo de gênero ainda está muito arraigado na nossa cultura e perpassa as instituições, de modo que educar uma criança completamente à parte desse padrão requer uma vigilância extrema, constante, contínua e muito difícil de ser realizada, além de implicar relações interpessoais muito autoritárias.
Provavelmente, os objetivos manifestos pelos pais, de dar liberdade para a criança escolher o seu próprio gênero, também podem ser atingidos, e a nossa sociedade já mostra abertura para isso, através de uma educação que aceita a livre circulação das pessoas por diferentes identidades de gênero, sem que o ponto de partida seja um destino inevitável e incontornável.”
Luciana Rizo
Mestre em Psicologia Cognitiva pela UFRJ
“Essa decisão dos pais é realmente polêmica, pois estão interferindo no senso de identidade da criança. O gênero é fundamental para a formação do ‘eu’. Mesmo os indivíduos homossexuais têm um gênero primeiro que os definirá como homossexuais por terem desejo por pessoas do mesmo gênero. Essa é uma definição biológica, e não psicológica. Portanto, toda essa preocupação dos pais se faz desnecessária. Se o importante, para eles, é que o filho tenha liberdade, isso deveria ser trabalhado ensinando habilidades de solução de problemas, responsabilidade e capacidade de fazer escolhas fundamentadas. A escolha do gênero é algo que foge de nosso controle.
A questão que me surgiu quando li a matéria foi de a criança ser hermafrodita. Nesse caso, é possível escolher o gênero que permanecerá, mas quanto mais cedo isso for definido melhor será o prognóstico psicológico dela.
Como consequências para a criança estão o estranhamento dos colegas com os quais ela vai conviver, o não-pertencimento a um grupo (meninos x meninas) e uma falha na criação da identidade do ‘eu’. A provável rejeição do grupo na infância e o não-pertencimento podem interferir de forma significativa na autoestima e no relacionamento interpessoal e amoroso.
Na verdade, os pais têm uma intenção – a de criar o filho(a) com liberdade –, mas estão criando problemas psicológicos para essa criança com consequências significativas em várias áreas da vida. Como disse, existe uma falha na formação do ‘eu’ que traz uma reação em cadeia de problemas psicológicos. Não sei se essa atitude é ilegal, mas, com certeza, constitui-se numa violência contra a pessoa.”