Durante a reforma da casa, em 1996, o casal Merced e Petrucio descobriu que a residência onde morava, na Rua Pedro Ernesto, 36, na Gamboa, bairro da região portuária do Rio de Janeiro, havia sido construída sobre um cemitério. Eles não sabiam do valor histórico dos restos mortais encontrados, confirmado pelo Instituto de Arqueologia Brasileira. Ali, aproximadamente entre 1770 e 1830, foram enterrados 60 mil escravos africanos que não resistiam aos meses de viagem nos navios negreiros ou morriam recém-chegados. O local ficou conhecido como Cemitério dos Pretos Novos.
Hoje, pesquisadores do Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM/UFRJ), em parceria com o Museu Nacional/UFRJ e a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FioCruz), trabalham para, a partir dos ossos, desvendar o DNA e mapear a origem dos escravos trazidos para o Rio de Janeiro.
Os corpos eram enterrados sem maiores cerimônias e cobertos por pouca quantidade de terra. No período de chuvas era comum que eles ficassem descobertos causando mau cheiro que incomodava a vizinhança. Assim, “costumava-se queimar os corpos, que eram enterrados em valas comuns”, afirma o professor Franklin David Rumjanek, coordenador do Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular. O que dificulta a obtenção do material genético para análise da ossada, que já se decompõe há,pelo menos, 180 anos.
Objetivos
“Teremos dificuldades, mas nossos primeiros resultados indicam que teremos sucesso. Já conseguimos determinar o sexo dos cadáveres a partir do DNA das nossas amostras”, avalia Rumjanek. Os pesquisadores possuem dois objetivos principais e um terceiro mais remoto.
“Temos uma oportunidade única de trabalhar com ossadas sabidamente de origem africana e assim poderemos mapear a origem étnica dos escravos, de onde eles vinham nesse período em que a escravidão já havia sido banida em uma série de lugares. Teremos a possibilidade de realizar esse mapeamento caso consigamos ter acesso ao DNA mitocondrial para análise. Os ossos foram queimados e enterrados próximo à superfície, tendo contato com a água, além de estarem em decomposição há mais de um século”, conta o pesquisador.
O segundo objetivo é utilizar ferramentas de genética forense para determinar até que ponto de calcinação de um osso se consegue obter DNA para análises. “Poderemos descobrir que até mesmo um material antes considerado imprestável pode servir para análise com fins de investigações judiciais.”
A hipótese mais remota é descobrir “se conseguimos obter a indicação de algum micro-organismo que tenha sido causador de patologias que levaram à morte e que indique a epidemiologia de certas doenças, como, por exemplo, o DNA do bacilo da tuberculose, que tenha ficado preservado. É difícil saber o real motivo da morte dos escravos, porque eles eram transportados sob condições desumanas e abalados psicologicamente. Mas há a possibilidade de eles terem tido doença de chagas, esquistossomose, tuberculose, varíola”, revela Franklin.
Técnica
O trabalho no Instituto de Bioquímica já está em andamento com a análise de ossos longos selecionados entre as milhares de peças do Cemitério dos Pretos Novos. “A superfície do material está muito desgastada e há nela um grau de contaminação muito grande. Então, vamos buscar o DNA mitocondrial, que é menor e mais resistente do que o DNA nuclear, nas camadas mais internas dos ossos”, diz o coordenador.
E ele complementa: “conseguimos isso escavando o osso e visualmente identificamos uma região que não foi totalmente mineralizada. Transformamos essas partes em pó, que é tratado com soluções que extraem o DNA total e depois por meio de uma técnica de amplificação do DNA, chamada de PCR (reação em cadeia da polimerase), conseguimos ampliar regiões específicas daquele DNA. Esse material amplificado será sequenciado por um aparelho analisador automático. Com isso será possível analisar de onde eram os ancestrais dos escravos.”
As arcadas dentárias, que conservam mais o DNA do que os ossos, encontradas na Gamboa foram enviadas para os EUA e estão sendo trabalhadas por colaboradores do projeto que atuam na pesquisa da origem cultural dos escravos. “Algumas etnias se caracterizavam por limar os dentes, os tornando mais pontudos, o que é um traço característico de determinada cultura”, explica Franklin Rumjanek.
Por fim, o cientista destaca a colaboração do professor Marcos Farina, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB/UFRJ) que trabalha com biomineralização, analisando os elementos que compõem os ossos para relacioná-los à região de origem. E conta que o projeto de pesquisa ― composto por um grupo de estudo multidisciplinar e que almeja incorporar estudantes ― foi recentemente enviado para análise da Faperj para receber incentivo. “É difícil fazer qualquer previsão num trabalho de pesquisa. De maneira otimista diria que em um ano já devemos ter um conjunto de resultados que nos permitam realizar uma publicação científica”, avalia Rumjanek.