A segunda edição da série Por uma boa causa em comemoração aos 90 anos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que analisa o desenvolvimento das áreas das ciências da saúde a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), aborda a atividade farmacêutica. Para tanto, convidamos as professoras Guacira Corrêa de Matos, da Faculdade de Farmácia da UFRJ, e Márcia Maria Barros dos Passos, ambas do Departamento de Medicamentos.
De acordo com a professora Guacira, o exercício da Farmácia no Brasil começa nas boticas que funcionavam nos colégios jesuíticos e posteriormente nas Irmandades da Misericórdia, no período colonial. Em meados do século XVI, foram autorizadas as primeiras boticas destinadas ao comércio e à manipulação de medicamentos.
Em todo o mundo, o ensino de Farmácia se iniciou nas escolas de medicina e, no Brasil, não foi diferente. “Por muito tempo, foi facultado ao médico o exercício da Farmácia, bastando para isso uma prova de qualificação na disciplina Manipulação Galênica. Somente em 1832 foram criados os cursos de Farmácia vinculados às Escolas de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. A autonomia didática e administrativa da Faculdade de Farmácia da UFRJ foi obtida em 1947”, relata Guacira Matos.
A partir da primeira metade do século XX, a formação do farmacêutico foi ampliada para o campo industrial (medicamentos e alimentos) e de análises clínicas. “Observamos uma crescente evolução que progride da concepção do medicamento como principal instrumento da formação, para uma abordagem mais ampliada, focada nas implicações da utilização dessa tecnologia”, avalia a professora Márcia.
No entanto, diante do avanço tecnológico e econômico após a recuperação do período pós-guerra houve considerável crescimento da indústria farmacêutica. O que resultou no “distanciamento do farmacêutico de sua função social, atuando nas farmácias comunitárias públicas e privadas e nas farmácias hospitalares, e consequente perda de sua identidade como profissional de saúde. No geral, a atividade farmacêutica ficou restrita à venda de medicamentos”, afirma Guacira. Quadro agravado pelo crescimento do número de drogarias e descaracterização das farmácias, voltadas ao comércio dos produtos da indústria.
Anterior à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, a retomada do farmacêutico como profissional da saúde foi preconizada pela Declaração de Alma-Ata de 1978, formulada na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, no Cazaquistão. Márcia Passos conta que a declaração “abriu o debate sobre o direito à saúde, centrado não só na cura, mas também na prevenção de doenças e na promoção da saúde e que, para tanto, exige a adoção de um novo modelo de saúde, mais integral e resolutivo, com abordagem multidisciplinar”.
Para Guacira Matos, após a criação do Sistema Único de Saúde se evidenciou a importância da construção de uma política de assistência farmacêutica para o país, assentada nos princípios doutrinários e organizativos do SUS e capaz de garantir o acesso da população a uma terapêutica medicamentosa com qualidade, segurança e economicidade. “A Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (Lei 8.080/1990), ao incluir a assistência farmacêutica no âmbito da assistência terapêutica integral, legitimou e alavancou a reorientação da formação e da atuação profissional do farmacêutico”, avalia.
Assim, os principais impactos para o setor foram determinados pela ampliação da assistência farmacêutica para além da simples disponibilização de medicamentos. “Ganhou força o conjunto das atividades relacionadas à organização, financiamento, gestão e avaliação da assistência farmacêutica prestada pelo SUS, bem como a pesquisa, a inovação e o desenvolvimento industrial na área farmacêutica”, afirma Guacira. Para Márcia, “a partir da implementação do SUS, a assistência farmacêutica abrange um conjunto de ações e serviços de atenção à saúde do cidadão que culmina com o acesso propriamente dito ao medicamento”.
O impacto do SUS na UFRJ
A professora Guacira aponta que, dentro da universidade, a implantação do SUS implica em duas principais vertentes: a reorientação da formação profissional e o desenvolvimento de atividades de pesquisa e de extensão. Em relação à assistência farmacêutica, o principal efeito induzido pelas demandas do sistema de saúde na Faculdade de Farmácia da UFRJ foi a aprovação em 2007 do Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Farmácia.
“O novo currículo promove a integração entre as ciências exatas, biológicas, da saúde, humanas, sociais e farmacêuticas, com o objetivo de formar farmacêuticos com formação generalista e dotados de competências e habilidades nas áreas de fármacos e medicamentos, análises clínicas e toxicológicas e análise, controle e produção de alimentos, tendo como eixo a assistência farmacêutica”, diz Guacira Matos.
Outro ponto de destaque é o Programa de Pós-graduação stricto sensu em Ciências Farmacêuticas da Faculdade de Farmácia. Seus principais focos são a pesquisa de novos fármacos e o desenvolvimento de novas formulações de interesse para as necessidades de saúde da população brasileira.
Avaliação geral do SUS
Por fim, as duas professoras fazem uma análise geral dos 20 anos de atividade do SUS. De acordo com Márcia Passos, “o SUS é o maior projeto de inclusão social do mundo, por promover o acesso universal às ações em saúde independente do seu nível de complexidade e exigência tecnológica. Garantindo, dessa forma, a integralidade das ações em saúde com equidade. Entretanto, um de seus maiores desafios consiste no desenvolvimento e aperfeiçoamento de instrumentos de gestão que auxiliem na regulação e controle da assistência a saúde, de forma a garantir a sustentabilidade do sistema”.
Já Guacira Matos avalia que “apesar de todas as dificuldades, o SUS tem se mostrado capaz de estruturar e consolidar a política de saúde do país, com inquestionáveis avanços para os níveis de saúde da população, como na drástica redução da mortalidade infantil e na efetividade dos resultados da estratégia de saúde da família. Entretanto, subsistem importantes desafios, principalmente quanto à garantia dos princípios de universalidade, integralidade e equidade, ao planejamento e financiamento do sistema, à persistência de profundas desigualdades regionais e populacionais”.